sábado, 18 de outubro de 2014

Casa de eira com porta quinhentista em Molelinhos



Arquitectura rural, Barreiro de Besteiros




Casa rural com carranca em Sabugosa




O Solar de Nandufe - Uma história de Ficção

O SOLAR DE NANDUFE.
Uma história de ficção, publicada na forma de folhetim, no Jornal "A Voz". Começou a ser publicado em 10/04/1967, e da autora só se sabe o primeiro nome, Vera.

Quando o criado Manuel me veio acordar, era já bastante tarde, mas eu que, normalmente, me levantava sempre sobre o cedo, nessa manhã preguicei um pouco, pois na véspera o serão, em casa dos meus amigos Meneses, havia-se prolongado pela noite dentro. Manuel entrou com a bandeja do pequeno-almoço. Ora, coisa que eu também nunca fazia era tomar o pequeno-almoço no quarto pois desde sempre gostei de me levantar cedo. Quer fosse Inverno ou Verão, ia sempre à casa de Jantar, mandava abrir, de par em par, as janelas que davam para o jardim, sentando-me à mesa em frente delas, e ali ficava a tomar o pequeno-almoço e a fumar o meu primeiro charuto do dia.
- Bons dias, meu senhor. Desculpe Vossa Excelência vir incomodar, mas é que está lá em baixo um senhor que deseja falar com Vossa Excelência.
-Quem é esse homem?
-Não o conheço, meu senhor. Diz ter chegado ontem à noite, de Viseu, chamar-se Passos e desejar falar com o senhor dom Jorge.
Não sabia quem seria o tal Passos, pois não me lembrava de jamais ter ouvido falar nesse nome, mas à simples menção de Viseu, o meu coração deu um pulo, pois
era certamente coisa ligada com o meu velho avô; não quis sequer perder tempo em tomar o pequeno-almoço nem em me vestir e enfiando o roupão, desci à sala, ao encontro do meu visitante dessa manhã.
Quando entrei na sala, apesar da pouca luz, vi logo o homem. Era alto, já de certa idade e todo de preto, de nariz adunco. Avançou para mim, e, numa voz cansada,
perguntou-me:
- É, certamente, o senhor dom Jorge da Silveira?
Perante o meu aceno de cabeça, confirmando a sua suposição, o homem de preto estendeu a mão e continuou:
- Chamo-me Joaquim Passos, sou procurador, em Viseu, e vim a Lisboa para falar com Vossa Excelência.
- Muito, prazer em o conhecer senhor Passos. Faça favor de se sentar o de dizer ao que vem.
O homem sentou-se no sofá, em frente de mim, e colocando, cuidadosamente, o chapéu sobre os joelhos olhou-me e disse:
- Senhor dom Jorge, tenho o desgosto de comunicar a Vossa Excelência a morte do seu ilustre avô, o senhor dom Jácome da Silveira.
Ao ouvir esta noticia, as minhas mãos começaram a tremer, e não mais pude desfitar o homem sentado na minha frente, que, em voz baixa e monótona, continuou:
- O avô de Vossa Excelência faleceu anteontem, e, mal soube a notícia, apressei-me a vir a Lisboa, comunicá-la a Vossa Excelência, pois achei que não seria coisa para lhe mandar dizer por esse novo engenho. (O «novo engenho», a que o senhor Passos se referia, era, o telégrafo, havia pouco inaugurado por Sua Majestade). E assim, nesse mesmo dia, tomei a diligência e cheguei ontem aqui à capital. Como era já bastante tarde, tive medo de vir incomodar o senhor dom Jorge. Saiba Vossa Excelência que o senhor seu avô morreu quase de repente, mas que ainda houve tempo do chamar o senhor abade para os sacramentos.
- Ainda bem, pois. no meu desgosto, isso serve-me de consolação. Sendo o meu avô tão religioso, como era, fazia-me impressão que tivesse morrido como um pagão.
- Tenho em meu poder o testamento, do senhor dom Jácome da Silveira, em que nomeia Vossa Excelência seu único herdeiro, o que está certo, pois Vossa Excelência é
o seu único neto, e por quem ele demonstrou sempre ter grande afecto e carinho.
Assim de um momento para o outro, eu via-me sem o meu original avô, e transformado num dos mais ricos fidalgos deste século.
- Quando tenciona partir, senhor Passos?
- Ainda hoje, ou, quando multo, amanhã.
- Pois bem, meu amigo, eu acompanho-o. Peço-lhe só que aguarde o tempo de me preparar e de me ir despedir da minha noiva.
Assim foi. Vesti-me, mandei o Manuel arranjar-me uma mala, chamar um fiacre, e fui a São vicente, a casa do general Valadas, comunicar a noticia. a Luísa Valadas, a minha noiva.
Cheguei, precisamente, à hora em que toda a família estava reunida na casa do jantar para o almoço. A minha linda noiva, ao ver-me, levantou-se e, radiante de felicidade veio ao meu encontro, com as mãos estendidas. Mas, ao reparar na minha expressão de tristeza, esmaeceu e, numa voz aflita, perguntou-me:
- Que tens, Jorge? Que foi que aconteceu?
- Luísa, tive há pouco a noticia da morte do meu avô, e venho-me despedir, pois parto ainda hoje para Nandufe.
O lindo rosto da minha noiva ensombrou-se de tristeza, e os seus olhos marejaram-se de lágrimas. Abraçando-me, docemente, disse:
- Meu pobre Jorge, como é meu o teu desgosto, e que pena tenho de nunca ter conhecido o teu avô! Mas, enfim, foi esta a vontade de Deus.
Na tarde desse mesmo dia, tomámos o comboio, recentemente inaugurado, até ao Carregado, e depois de. uma viagem, mais ou menos cómoda, e com algumas fagulhas nos olhos, chegámos à estação terminal, e aí tomámos então, a mala-posta, onde devíamos fazer o resto da viagem. Mas, se a primeira parte se havia feito menos mal, o mesmo não sucedia com a segunda. A diligência já de si era inconfortável, o vento e o frio que fazia não a tornavam melhor, e os nossos companheiros não eram, propriamente, o que se possa chamar de alegres convivas, pois eram a família de um juiz de Lamego, composta pelo pai, a mãe, uma criada, duas meninas de quatro a seis anos, e um bebé de poucos meses com a respectiva ama. A esposa do juiz ia chorosa, pois deixara a cidade, a mãe viúva, e voltava para Lamego, terra onde, no dizer dela, se não dava bem.
O juiz, homem bastante mais velho que a esposa, de cabelos grisalhos, quase brancos, e lunetas, todo ele respirando dignidade, homem de poucas falas, e ainda por cima agastado e enciumado com as lamurias e o desinteresse da mulher em voltar ao lar conjugal, apenas abria a boca, ou para comer do farnel bem fornecido que a sogra havia preparado, ou para repreender, quer os filhos, quer alguma das criadas.
As duas pequenas, cansadas e fartas de viagem, ou dormiam, ou então, agitavam-se numa verdadeira impaciência. Mas, quando tínhamos a sorte de elas se acalmarem para dormir, era o bebé que desatava num berreiro infernal.
Assim, já cansado e farto, quando chegamos a Coimbra, combinei com o senhor Passos deixar a mala-posta e alugar urna carruagem que nos conduzisse aos dois até ao meu solar de Nandufe.
- Há muito tempo já que o senhor dom Jorge não vem às suas terras?
- Sim, senhor Passos. Desde que meu pai teve aquele acidente de cavalo que lhe custou a vida, minha mãe não quis, depois de viúva, continuar a viver em Nandufe, sozinha comigo e com o sogro. Por isso, pouco tempo depois da morte de meu Pai, fomos viver para Lisboa, para junto de minha família materna. Ora, deixe ver... já lá vão mais de vinte anos, pois meu pai morreu tinha eu oito anos.
- Então, não se recorda de nada, nem da terra, nem do solar, e até, talvez, nem mesmo do seu avozinho.
- Engana-se, meu amigo, lembro-me de tudo multo bem... de tudo, como deixei! Mas, é natural que, passados tantos anos, as coisas estejam diferentes…
- Bem, o senhor dom Jácome da Silveira era um original, mas multo boa pessoa. Aquilo não havia pobre que lhe chegasse à porta, que não fosse logo socorrido. Mandava que lhe dessem comida, dinheiro, multas vezes roupas e até alguns encontraram abrigo naqueles celeiros, pelas noites frias de Inverno. Até dizem que o Zé do Telhado era bem amigo do seu avô, e lhe tinha grande consideração e estima. Bem, Isto diz o povo, não que eu saiba nada, mas, como deve compreender, ele nunca atentou Contra os bens de, Nandufe, e que, vamos lá com Deus, são dos maiores aqui da nossa Beira. Ora, isto deu que pensar, E o povo começou logo a falar.
- Meu caro amigo, não me surpreende que fosse verdade, pois o meu avô era homem para conhecer o Zé do Telhado, toda a sua vida foi bem agitada. Eu conheci-o pouco, pois, como lhe, disse, aos oito anos fui viver para Lisboa, nunca mais o tornando a ver, mas conheço-lhe toda a vida por aquilo que minha mãe me contou.
«Meu avô, como o senhor Passos deve saber, ficou órfão ainda menino de colo sem a mãe, morta na flor da Idade, e sem o pai, supliciado pelos franceses, e não tendo ninguém mais, como parentes chegados, além de duas tias gémeas, freiras num convento em Viseu. Foi por elas criado, daí o seu grande apego à religião. Quando chegou aos catorze anos, tomou, posse da herança e veio com o seu preceptor, o padre Ramos, viver para Nandufe. Houve logo a pressa e a necessidade de o casarem, e, assim, procurando pelas redondezas, encontraram-lhe para mulher, uma prima, tão jovem como ele, e tão rica, que, em muito, lhe iria aumentar a casa.
«Foi um casamento sem amor, e do qual apenas nasceu uma filha que morreu criança. Meu avô foi um miguelista convicto, combateu sempre ao lado do seu rei e era-lhe tão devotado, que o acompanhou ao exílio, tanto da primeira como da segunda vez. E como, à data, meu avô já estava viúvo da sua primeira mulher, numa visita à corte de Viena, encontrou a minha avó, filha de uma pobre e numerosa família magiar.
«Dizem que a minha avó Valeria era multo bela, e que meu avô, ao vê-la, pensou logo em fazer dela sua mulher. Foi um casamento sem história, como todos os casamentos felizes, e dessa união nasceu o meu pai. E quando, alguns anos mais tarde, a rainha agraciou meu avô, e que ele teve de novo licença de voltar a Portugal, velo só com meu pai, menino de pouca idade, pois minha avó havia falecido pouco antes, ao dar a vida a um segundo filho, que não chegou a viver mais que poucos dias. E foram ainda as tias freiras em Viseu, e apesar de já terem multa idade, que serviram de mãe a meu pai, sendo as responsáveis pela sua educação e formação.
«Meu avô, depois que regressou do exílio, não mais saiu de Nandufe, pois o desgosto que sofreu com a morte da segunda esposa foi para ele um golpe terrível, que o fez afastar de todo o convívio com a corte e a sociedade. Apenas tinha por amigos aqui, em Nandufe, o abade, o senhor Cunha da farmácia e o regedor, com quem todas as noites jogava a sueca, jogos esses de que me lembro de assistir em menino, quando aqui ainda vivia».
Entretidos na conversa, nem havíamos dado pela nossa chegada a Nandufe. Por isso, a vista daquele solar meio arruinado fez-me uma impressão desagradável.
O solar, uma construção de forma quadrangular, com um arco, brasonado, a meio do corpo principal, e que dava entrada para o pátio, dominado pela alta silhueta de uma torre ameada, último vestígio da primitiva construção medieval.
No pátio, fomos bastante mal recebidos, por dois enormes cães que se preparavam para nos devorarem, não só a nós como também aos cavalos, e não foi sem uma certa dificuldade que o cocheiro, ajudado pelo seu chicote, conseguiu enxotá-los e tocar, finalmente, a campainha da porta.
Mal acabou de tocar, uma luz acendeu-se no interior do solar, e uma voz de mulher soou nos ares, amaldiçoando quem quer que fosse que tocava àquelas horas.
Enfim, a porta abriu-se, e eu entrei, finalmente, no meu solar nortenho.
Olhei à minha volta e aquela entrada actuou sobre mim de uma maneira estranha. Era como um pátio coberto por um tecto abaulado, não propriamente uma abóbada, e na minha frente achava-se a mulher que me abrira e porta, uma mulher dos seus setenta ou mais anos, que me olhava, fixamente. Quando acabei a inspecção daquela entrada e daquela velha tão estranha, rompi o silêncio que desde a minha chegada ali reinava, dizendo:
- Sou o neto do senhor dom Jácome.
Mal acabava de proferir estas palavras, a velha desatou em pranto, limpando os olhos e o nariz às pontas do avental, e numa voz que mal se ouvia, por causa dos soluços murmurava:
- Meu rico menino! Há quantos anos o não via! Até já não se lembra de mim, da Natália, que o trouxe ao colo como uma mãe! Ai, meu Jesus, que grande está! E tão perfeito que é de louvar a Deus....ai! Que lindo, meu rico senhorinho! O morgadinho de Nandufe! E o seu avô que já não é vivo pró ver.
E o choro, cada vez aumentava mais; sentia-se desorientado, e também um pouco emocionado. Foi, então, que sem saber o que fazer para pôr fim a uma situação tão delicada, puxei-a para mim e abracei a velha, criada, que então se acalmou.
O senhor Passos, assim como o cocheiro, olhavam para nós, perplexos, e eu, lembrando-se deles, perguntei-lhes se queriam jantar qualquer coisa. Os dois aceitaram, e a Natália, gritando numa voz já quebrada pelos, anos, conseguiu fazer-se ouvir do marido, o velho Jacinto, que apareceu, coxeando e resmungando.
Ao ver-nos, ficou, espantado" sem saber que fazer, mas, posto ao corrente de quem éramos, tirou a usada, boina, que trazia sempre, até mesmo dentro de casa, para lhe proteger a calva do rigoroso Inverno beirão, e pegando na minha mala lá a levou, sempre coxeando calado, tendo eu logo nessa altura visto ser ele homem de poucas conversas, e nada expansivo, o que contrastava bem com, a mulher que Deus lhe havia dado.
Como o procurador e o cocheiro mostrassem pressa de seguirem viagem até casa, Natália serviu-nos fatias de lombo de porco, que tinha metido em banha, e fumeiro desse ano, tudo acompanhado por um generoso vinho" que, Jacinto fora buscar à adega.
Como me sentia cansado da longa viagem que fizera, resolvi ir deitar-me, tendo escolhido, não o quarto, que, desde séculos pertencia ao, senhor de Nandufe, mas sim aquele que fora meu durante a minha Infância, e onde eu encontrei mil recordações dessa época: um ve1ho cavalo de pau, um pequeno canhão de bronze, um boneco articulado, que fizera parte de uma caixinha do música, e, dentro do armário, lá estava ainda o meu ,fato de veludo verde, que minha mãe me costumava vestir, para ir a Viseu, visitar as tias freiras.
Lembro-me como se fosse hoje dessas visitas ao convento. Fazíamos a viagem de Nandufe a Viseu, ela, o avô e eu no trem; o meu pai, como grande. amador de cavalos, herança que recebera de sua mãe, filha da estepe húngara, cavalgava a nosso lado no seu baio preferido.
Quando chegávamos à cidade, e antes de nos apearmos ao portão do convento, minha mãe compunha-me o fato, e ajeitava-me os meus caracóis loiros. Só, então, o cocheiro tocava a sineta.
Passado um pouco, a grande e maciça porta girava nos gonzos. e a irmã porteira mandava que entrássemos para o parlatório. As minhas velhas tias chegavam, então, as duas ,tão iguais que eu ao principio não sabia nunca qual era uma, ou qual era a outra. Mas, não vinham sós: traziam com elas uma travessa com bolinhos de ovos, papos de anjo, castanhas, etc., que todos comíamos, gulosamente; eu, mais do que nenhum dos outros, comia sempre tantos que era sabido, durante dois dias andava doente.
Como a visita fosse longa eu, passado um bocado, começava a dar mostras de impaciência. Então, uma das minhas tias pegava-me pela mão e levava-me para o claustro das noviças, onde era mimado e distraído, pois o claustro não só era um maravilhoso roseiral, como tinha um lago com peixes, que faziam as minhas delícias, e porque uma das irmãs dava-me sempre um pouco de miolo de pão para eu deitar aos peixes.
Quando me fartava daquela brincadeira, ia ver o pombal, pois o convento possuía um, com pombos de várias raças, mas todos multo bonitos e que eram o orgulho da irmã Maria da Cruz, que os tinha ao seu cuidado.
Acabada a visita e muito cheio de beijos, voltávamos para casa, mas eu, que para lá ia excitado com a perspectiva de tantos prazeres, para cá, mal entrávamos na estrada adormecia, só acordando no meu quarto na manhã seguinte. E, embalado por entre recordações tão doces, de uma infância feliz, deixei-me adormecer, no conforto da minha cama, enquanto lá fora a chuva continuava a cair.

Aproveitei todo o dia seguinte à minha chegada, para ir ao cemitério da vila, prestar homenagem ao meu avô, recentemente falecido. Visitei o senhor abade, que ao ver-me conheceu-me logo. Era um velhinho, pequeno, e seco, tão surdo, que tive de gritar tanto e tão alto que por fim comecei a enrouquecer. Acabadas estas duas minhas visitas, comecei a tomar contacto com, a casa e as terras, que eram minhas. Natália serviu-me de guia na visita ao velho solar. Percorri com ela salas, quartos, escadas e corredores. Num dos corpos da casa. houve uma porta velha que a velha criada não abriu; tentei eu fazê-lo, mas ela opôs-se a semelhante gesto, o que me fez certa impressão, pois lembrei-me de uma conversa que ouvira em garoto a meu pai, e na qual se falava de fantasmas. E não me foi possível durante, todo o resto do dia, esquecer-me daquele quarto fechado, pelo que, um pouco antes do jantar, levado pela curiosidade. fui, finalmente, visitá-lo.
Era um quarto de cama, e cujo aspecto mostrava estar fechado de longa data. O mobiliário, belo e sumptuoso, do mais puro estilo D. João V; a cama de espaldar forrado de damasco vermelho assim como a colcha, apresentava nítidos vestígios dos anos. Nas duas janelas que abriam sobre o pátio, as cortinas eram de rendas de Veneza, mas tão carregadas de pó, que mais pareciam cinzentas-escuras do que brancas, como de facto eram. O belo tapete persa, que cobria o soalho, apresentava, aqui e ali, sinais de ter servido de refeição aos ratos. A um canto. um oratório com um belo Cristo crucificado, todo de marfim e feito de uma peça só. Aos pés do oratório, um genuflexório e, aberto sobre ele um Livro de Horas, com preciosas iluminuras.
Peguei no livro, folheei-o, e nele encontrei gravado, em letra bela e trabalhada o nome de Sofia. De repente, lembrei-me de que nesse mesmo dia, ao, passear no jardim vi no tronco de uma japoneira o mesmo nome de Sofia gravado à faca. Dei mais uma vista de olhos ao quarto e lá estava. sobre uma cómoda, um serviço completo de «toillete», todo de prata, com o brasão da nossa família, por baixo um «S».
Sai dali, com aquele nome a bai1ar-me diante dos olhos e dirigi-me à cozinha, onde a velha Natália se afadigava a preparar-me uma sopa para o meu jantar. .
A cozinha era um enorme compartimento, todo lajeado, com os lavadouros feitos de mármore, pesados e solenes. Nas paredes havia armários de portas escancaradas, e dentro dos quais se podia ver uma bateria de cozinha toda de cobre amarelo. A parede do fundo mais não era que uma imensa chaminé onde nas noites frias de inverno senhores e servos se costumavam sentar. abrindo castanhas no fogo, e tentando encontrar um pouco de calor. Mas nessa noite a lareira estava vazia, apenas a ocupavam dois gatos borralheiros e uma panela de ferro na qual a água aquecia. Sentei-me na cadeira de alto espaldar e que desde séculos estava reservada ao chefe da família dos Silveiras, ao morgado de Nandufe. Com a tenaz de longo cabo espevitei as brasas e pigarreando, solenemente, disparei à queima-roupa:
- Natália tu com certeza sabes à história do quarto fechado. conta-me lá.
- A velha olhou-me com um ar aterrado e quase a medo articulou estas palavras:
- Entrou naquele quarto? _
E perante a minha afirmativa suspirou sem adiantar mais nada. Mas, como eu continuasse a Insistir. ela veio, até junto de mim e limpando as mãos ao aventalão que a cobria quase toda, sentou-se num mocho à minha frente e numa voz onde se notavam perfeitamente a emoção e o receio, contou-me a seguinte história:
- Sabe, meu senhor eu vivo nesta casa, praticamente desde que nasci pois sou irmã de leite do senhor dom Jácome que Deus haja. A minha mãe veio para cá ainda o morgado não era nascido, pois o primeiro e único leite que ele bebeu foi o dela, que lhe quis sempre tanto como se filho do seu ventre fosse, e com ela vim eu menina de tenra idade e já órfã de pai. Por aqui me criei. aqui me casei e aqui, me nasceram os filhos os dois que para longe de mim foram... para o Brasil, em busca da fortuna. Nem eu nem o pai soubemos mais novas deles e nesta saudade nos temos consumido. Mas dizem que o Brasil é grande, e que as noticias custam a cá chegar. Deve ser Isso. sim, pois outra razão não vejo, eles não nos podiam ter esquecido, eram tão bons filhos, toda a nossa, alegria... Ainda os estou a ver a brincarem no jardim com o senhor Jorginho, o seu pai. Eram tão amigos e tão diferentes! Os meus, morenos, robustos e de cabelos bem pretos, o seu paizinho, tão esguio e tão lourinho, ou mais lourinho que os anjos do céu! Mas não vá vossa senhoria pensar que os meus filhos eram dois brutos, isso é que eles não eram pois quando velo do Porto o mestre que o seu avô mandou buscar para ensinar as letras ao filho, mandou-me chamar para me dizer:
-«Ouve lá, Natália, eu quero que os teus rapazes, que são meus afilhados, todos os dias venham aprender com o senhor Oliveira. Está a ouvir, mulher?»
- «Sim meu senhor» -e o meu coração de mãe teve tanta alegria que chorando beijei as duas mãos do morgado. Pela bondade dele os meus filhinhos iam ser quase doutores.
- «Deixa-te de asneiras mulher... e vai às tuas lides». «E. eu sempre chorando de alegria e orgulho, lá me fui».
Sentia-me comovido um nó apertava-me a garganta. Desviei a vista e ateei novamente o fogo que ia morrendo, pois aquele rosto de velha, engelhado, e todo banhado de lágrimas amargas fazia-me estalar o coração de piedade.
- Meu senhor - continuou ela - o que lhe vou contar passou-se há tantos anos. que eu só sei, por me ter sido contado pela minha mãe.
«Sofia era a mãe do seu avô. a morgadinha de Sandim, como todos lhe chamavam. Era multo linda e multo boa, nunca o seu coração se fechou para a desgraça de um infeliz. Nos seus lábios havia sempre o mesmo sorriso tanto para os nobres como ela, como para os filhos do povo como eu... A morgadinha tinha casado havia três anos com o senhor dom Luís da Silveira senhor desta casa e de muitas terras, quando a morte a surpreendeu, na flor da Idade.
«Ao morrer, a morgadinha deixou um filhinho, de pouco mais de um ano, o seu avô. o senhor dom Jácome.
A sua avó, meu senhor, morreu naquele quarto, e desde então, por ordem do marido, não mais foi aberto, tudo foi deixado tal qual se encontrava nó dia da sua morte. Dizem quo só ele, o morgado, em certas noites, quando as saudades da esposa querida o não deixavam encontrar o sono tão almejado, se levantava, e ia chorar a sua mágoa junto ao leito da sua morta bem-amada»
- Minha boa Natália, a história que me acabas de contar é uma linda história de amor. Mas, para te dizer a verdade, não vejo nela nada de especial. direi mesmo mais, nada de sobrenatural, que possa levar a pensar em fantasmas.
- Ai! Senhor dom Jorge, E que é voz do povo, e voz do povo é voz de Deus, que a morgada não morreu com a morte que Deus manda a todo o bom cristão, mas porque uma alma má, uma alma vendida ao diabo, assim o quis.
Ditas estas palavras, reinou um curto silêncio que eu quebrei, dizendo:
- Que, queres tu dizer, Natália? Não me digas que a avó Sofia foi assassinada!
I
- Tudo. leva a crer que sim, meu senhor.
- Mas por quem? Anda, diz lá por quem?
-A morgadinha fora educada com todos os esmeros e perfeição. Andara, em menina, num colégio para filhas de fidalgos, lá para as bandas de Lisboa, e de lá só saíra para casar com o senhor dom Luís. Nesse colégio fizera várias amigas e entre elas uma chamada Ana. Havia casado há pouco a morgada, e era tão feliz, que era mesmo um louvar a Deus quando recebeu da tal Ana uma carta.
- Uma carta?
- Sim, meu senhor.
- Mas, que tem isso de extraordinário? Toda a gente recebe cartas, de amigos, de parentes, sem que por isso deva morrer de morte forçada.
- Mas essa carta... era uma carta especial.
- Ah! Sim! Que diria essa carta? Que pena a não a poder ler!...
Neste ponto da conversa, Natália levantou-se e pegando na candeia que ardia sobre a mesa desapareceu no corredor frio e escuro, para surgir de novo pouco tempo depois, trazendo nas mãos um papel amarelado pelo tempo.
- Tome, leia vossa senhoria.
Agarrei na carta que ela me estendia, e aproximando-me mais da luz fraca de uma vela, abri a folha que estava dobrada em quatro e li:
Querida Sofia:
Sou muito infeliz! Se tu soubesses, minha boa amiga, como a minha vida é triste, o teu doce coração condoía-se de mim.
Meus pais morreram já os dois, e desde o dia em que meu pai fechou os olhos, ninguém mais à minha porta bateu que os credores, pois, como tu sabes, meu pai era um grande jogador, e foi esse vício, que le não soube dominar, a causa da nossa sina. Hoje nada me resta, nem mesmo a casa onde vivo, onde nasci e fui criada, pois dentro de dias tenho de a abandonar, nas mãos de um usurário, agora seu legítimo dono.
Soube, minha boa Sofia, que tinhas casado com um teu primo, que és rica e vives feliz, e que, para tua maior felicidade, és mãe de um lindo menino. Venho-te pedir, minha boa amiga, que o teu coração se não feche para uma desgraçada, e que me queiras receber em tua casa, como perceptora do teu filho.
É, ansiosamente, que fico a aguardar a tua resposta, que por conhecer o teu generoso coração tenho fé em seja favorável.
Beija-te, minha doce Sofia, como a uma irmã querida a tua,
Ana
(Continua...)
Fascículo 3
Depois que acabei a leitura daquela carta, fiquei virando e revirando o papel entre os dedos.
- Chamava-se Dona Ana de Melo, a amiga da morgada – continuou Natália. - Era muito fidalga, até tinha modos de corte, e estava sempre a falar no Rei, na Rainha, nos príncipes. Quem a ouvisse, até era capaz de pensar serem eles as únicas pessoas que conhecia neste mundo...
Neste ponto, a conversa foi interrompida pela chegada do velho Jacinto, que tossindo, devido à bronquite crónica que tinha, e arrastando a perna, que o reumático quase tornava inválida, nos anunciou já ter fechado a casa, como ele dizia:
- Pronto, meu senhor, está tudo fechado, todas as portas e janelas. Aqui não entram ladrões, e mesmo, não era preciso tantos cuidados, pois esta casa nunca foi assaltada como tantas outras aqui ao redor. O Zé do Telhado ou o João Brandão sempre respeitaram o morgado que Deus haja!
- Senta-te, Jacinto, aproxima-te do calor.
- Então, com sua licença, meu fidalgo, lá me sento, mas osso velho nem o inferno aquece.
- Cala-te, homem, não blasfemes, não invoques o nome do maligno, não vá ele aparecer por aí- Disse Natália, benzendo-se três vezes.
- Palermeiras, velha! Palermeiras! Pensas tu então que o demo está assim atrás da porta, pronto a saltar como uma lebre acossada pelos cães? Tem juízo, mulher.
« Mas, como eu ia dizendo, morgadinho, osso velho já não aquece, e então aqui, que o inverno é maior que o verão. Ainda lá nos «brasis» por onde andam os meus rapazes, parece que o calor é mesmo calor. Ou não é, senhor dom Jorge?»
- Tem razão, Jacinto. No Brasil, faz muito calor, até parece que demais.
- Também me disseram, que lá as gentes da terra são mais selvagens que nós, ainda combatem à moda antiga, com flechas, e parece que nos rios há peixes que comem mais depressa um homem mesmo vivo, do que nós comemos uma sardinha.
- Ai! Senhor Jorginho! Desde que o senhor Cunha, da Botica, falou nisto ao meu homem, ele não faz senão pensar que aconteceu desgraça aos nosso filhos.
- E então, mulher, quem te diz a ti o contrário? Esta falta de cartas... não pode muito bem ser isso?
- Cala-te, homem! Cada vez que me falas nisso, aperta-se-me o coração. Os nossos filhos tão lindos, tão bem criados, acabarem assim na barriga de um peixe, em vez de terem morte de homem!
Fez-me pena, aqueles dois velhos, tão sós e tão tristes, e para lembrar um pouco aquela saudade, que se lhes adivinhava nos olhos, pedi a Natália que acabasse de me contar a história que há pouco havia começado.
- Ana de Melo chegou a Nandufe num dia de chuva, em que o céu estava carregado de nuvens, e constantemente cortado por línguas de fogo, no ar andava o barulho aterrador do trovão. Parecia que a própria natureza se revoltava com a sua chegada, pois adivinhava que a fatalidade desta casa vinha com ela.
«Ana era linda. Os olhos, de um verde como a relva na primavera, brilhavam-lhe na face de pele branca e macia, que uma cabeleira ruiva como o fogo na noite de São João, emoldurava. No dia em que chegou, trazia vestido um fato de veludo preto, que ainda a fazia parecer mais branca.»
«Nos primeiros tempos tudo correu muito bem, mas pouco mais foi preciso, para que ela mostrasse verdadeiramente o que era- Uma mulher sem alma.»
- Uma mulher sem alma?- perguntei, surpreendido.
- Credo, meu senhor! Será possível que ainda não tenha percebido que ela atraiçoou a sua melhor amiga, a pessoa que tanto bem lhe havia feito?
- Mas como?...
- Mas...Da única maneira que uma mulher pode atraiçoar outra, roubando-lhe o marido, roubando-lhe o amor.
«Tudo começou numa manhã clara e cheia de sol, apesar de ser inverno. O fidalgo de Nandufe era um apaixonado da caça. Todo o «matão», que, como o senhor Jorginho sabe, é a maior propriedade aqui de muitas léguas em redor, era murado, e só o fidalgo aí podia caçar o javali, criado de propósito para esse fim. Ora, nessa manhã, o seu avô convidou a menina Ana para o acompanhar, pois ela, além de ser boa amazona, era também louca por montarias, e boa nessa arte como poucos homens, por vir habituada lá do sul às grandes caçadas, pois sendo o pai um grande caçador, e não tendo mais filhos além dela, desde muito pequena a tinha iniciado na arte da montaria.»
«Ana era, pois, nisto com em tudo o mais, o contrário de Sofia que, devido à sua doçura de carácter e ao seu bom coração, não gostava de assistir às caçadas do amigo. Repugnava-lhe ver sofrer o pobre animal, acossado por homens e cães, e tentando, numa fuga desesperada, salvar a vida, ameaçada de todos os lados. Assim, desde a chegada, aqui ao solar, de Ana de Melo, passou ela a acompanhá-lo sempre.»
« Nessa manhã muito cedo, quando os dois cavalos foram trazidos para diante da porta, pelo meu Jacinto, já dona Ana aí se encontrava, e mais bela que nunca. Pouco depois, quando o fidalgo chegou, ao ver a bela mulher que iria ter por companhia nessa manhã, como em todas as outras, não mais a pode desfitar, pois a visão era verdadeiramente deslumbrante. Ana havia posto, nessa manhã, um lindo fato de amazona, todo de veludo verde, o que contrastava com os seus cabelos cor de fogo; uma blusa de folhos de renda branca enfeitava-lhe o peito, e na cabeça trazia um chapéu do mesmo veludo do fato, mas todo enfeitado com penas de avestruz, brancas e vermelhas.»
« Confesso-lhe, meu senhor, que nunca a tinha visto tão linda como nesse dia.
Depois que os dois montaram a cavalo, lá partiram para o «Matão», acompanhados por três criados, entre eles o meu homem.
Tudo se passou como o costumado. Descoberto na cama o javali, começou a perseguição, de homens e cães, contra o animal, mas o bicho, já cansado e louco de medo, conseguiu encontrar um esconderijo, entre duas pedras, e aí se escondeu. Como os cães lhe tivessem perdido o rasto, e os batedores o não encontrassem, os dois caçadores propunham-se voltar para casa, desiludidos por essa manhã infrutífera, quando, subitamente, passando junto do esconderijo, por eles ignorado, o cavalo de Ana foi atacado pelo Javali, que julgando-se descoberto lhe saltou às pernas. A montada, ao ver-se tão inesperadamente atacada, assustou-se, tomando o freio nos dentes. A amazona experimentada, que era Ana, ainda o quis dominar, mas não conseguiu, e devido à confusão, que em pouco momentos ali se estabeleceu, ninguém foi em seu auxílio.
« Vendo-se perdida, gritou por socorro. Foi então que dom Luís tomou consciência do que se passava, e apercebendo-se do perigo que ela corria, cavalgou atrás dela, tentando sustar o cavalo. Mas este, ao sentir-se perseguido, mais louca tornava a sua corrida, embrenhando-se cada vez mais nos pinhais, não respeitando qualquer objecto que se apresentava pela frente, nem mesmo o muro que rodeava a coutada. Ao saltá-lo, Ana, devido ao terror que a dominava, deixou-se cair e desmaiou. »
«Dom Luís da Silveira apeou-se junto dela, para a socorrer. Julgando-a morta, tomou-a nos braços e cobrindo-a de beijos e lágrimas confessou-lhe o amor, que desde a chegada dela, a sua casa, naquele dia de tempestade, lhe nascera no coração, amor esse que ele nunca deixara transparecer em respeito pela esposa.»
« Ana, que pouco antes havia voltado a si, sentia uma grande alegria naquilo que ouvia, pois a sua alma, ambiciosa e sem escrúpulos, via já naquele amor a concretização para os seus mais loucos sonhos de riqueza e abastança e foi nesse preciso momento que ela resolveu libertar-se do único obstáculo que se opunha à realização dos seus sonhos, e esse obstáculo era Sofia.»

« Quis o destino que a morgada caísse, por essa altura, à cama, com um resfriamento, coisa própria da época em que estávamos.»
« Tinha Sofia trazido consigo, ao casar, a sua velha ama, para lhe servir de criada particular, que a amava como sua filha fosse, e lhe era profundamente dedicada. Quando a sua menina, como ela lhe chamava, adoecia ou se sentia mal, a velha Elvira não mais se afastava da sua cabeceira, recusando-se a ir para a cama, para a não deixar só um momento que fosse, não precisasse de qualquer coisa.»
« Havia já uns dias que a morgadinha estava doente, e Elvira começava a dar mostrar de cansaço daquelas noites seguidas, sem repouso no leito. Nessa noite, ao ver a sua menina repousar tão sossegadamente, sentou-se numa cadeira e, vencida pelo sono, deixou-se adormecer. Dormia há já um bocado quando, subitamente, foi despertada por alguém que entrava no quarto. Era Ana que, ao vê-la acordada, lhe colocou as mãos sobre os ombros, e com um sorriso lhe disse:
- « Não te preocupes, minha boa Elvira, repousa um pouco, que eu olharei por tua ama. Podes estar descansada, que não vai ser preciso nada. Olha, vê como ela dorme, sossegadamente, e que lindos sonhos deve ter a tua menina...»
A velha ama, sossegada por estas palavras, e não conseguindo vencer o cansaço que dela se apoderava, deixou-se adormecer, novamente. Mas, quis a fatalidade que em má hora o fizesse, pois na manhã seguinte toda a casa foi alarmada pelos seus gritos: A sua menina, a paixão de sua vida, estava morta.»
« Foi tão grande o choque que sofreu a pobre velha, que desde esse dia perdeu a razão; mas, antes que o seu espírito mergulhasse nas trevas para sempre, acusou Ana daquela morte tão inesperada.»
- Ora, Natália, quem pode fazer fé no que diz uma louca...
- Ai, meu senhor, assim seria, se outros acontecimentos não viessem juntar-se a tão grave acusação!
- Que acontecimentos foram esses então?- Perguntei eu, já excitado com a história que acabara de ouvir.
- O senhor dom Luís tinha recolhido aqui nesta casa um pobre anormalzinho, que vivia só na aldeia sem família, pois tinha sido abandonado, mal acabara de nascer, por um grupo de saltimbancos, que viera aqui dar um espectáculo, com as suas cabras e ursos amestrados. Ao nascer-lhes o filhinho, aquela gente sem alma, ao darem por a criança ser toda aleijadinha, embrulharam-na em míseros trapos e deixaram-na à porta da igreja, abalando eles a coberto da noite, sem destino conhecido.
« Nessa manhã o sacristão, ao abrir as portas para a primeira missa, foi alertado por um fraco vagido, vindo daquele monte de farrapos. Aflito, foi chamar o senhor prior, que, condoído pela sorte daquele infeliz inocente, pegou nele e o levou para casa.
« Mas, o nosso abade era bem pobre, pois o pouco que tinha ainda repartia com os mais miseráveis da aldeia, e as esmolas que recebia dos fiéis eram bem poucas, já que eles eram, igualmente, pobres. Então, o fidalgo mandou buscar o pobre enjeitado, e por aqui o criou. Quando o chico anão, assim era conhecido o rapaz, chegou à idade de trabalhar, fez dele moço de cavalariça.
« Ora, desde a chagada de dona Ana o moço mais ninguém via no mundo senão ela, sendo-lhe de uma completa dedicação, capaz de fazer, fosse o que fosse, por uma boa palavra dela. Ao ter, nessa manhã, conhecimento da morte da morgada, o «anão» desapareceu, sem tornar a ser visto em Nandufe. Fugiu para os lados de Trancoso e aí contou, a quem o quis ouvir, a seguinte história que bem cedo aqui chegou:
« Contava ele que, pouco antes da morte da sua ama, uma noite, a altas horas, estando ele a dormir na sua cama de palha, no sótão por cima da cocheira, foi acordado por dona Ana, que lhe mandou preparar, sem mais demoras, dois cavalos, um para ela, outro para ele. O pobre do rapaz tentou opor-se, tendo mesmo ajoelhado aos pés dela, pedindo-lhe que o não obrigasse a semelhante coisa, pois se o cocheiro desse pela falta dos cavalos, iria, certamente, denunciá-lo ao patrão, e este não só o castigaria, como seria até capaz de o por à porta, e ele, pobre enjeitado que nunca conhecera outra família a não ser as pessoas que lhe haviam feito bem naquela casa, não teria para onde ir. Mas Ana, insensível a tantos choros e rogos continuou a insistir, acabando ele por obedecer.»
« Prontos os cavalos, e sem ela nunca lhe dizer aonde iam, partiram em direcção a Tondela. Pelo caminho, o pobre anão, transido de frio e medo, rogara-lhe que voltassem para trás, pois era um perigo aquela viagem, assim de noite, os dois sozinhos por aquelas estradas, naquela época do ano, apenas, percorridas por lobos famintos em busca de alimento.»
« Mas ela, troçando dele, mandava-o calar numa voz ríspida que lhe não conhecia. Assim cavalgando pela noite escura, chegaram ao seu destino, e foi só então que, ao passarem à porta de um mísero casebre em ruínas, ele se apercebeu onde estava.»
« Ana desmontou, mandou-lhe que ficasse onde estava, tomasse conta dos cavalos, e sozinha penetrou naquele tugúrio miserável.»
« O anão obedeceu-lhe, mas, não resistindo à curiosidade, embora transido de medo, e sentindo os ossos rangerem, aproximou-se da casa, e espreitando por um buraco na parede que servia de janela ficou horrorizado com o que viu.»
« Uma velha nojenta, desgrenhada, e sem dentes, acariciava a cabeça ruiva de dona Ana, ajoelhada a seus pés, e que beijava, com a sua mimosa boca, a orla da saia, andrajosa, e esfarrapada, que a velha vestia. Então, a mulher mandou que a rapariga se erguesse, e dirigindo-se a uma panela, que fervia ao lume, tirar de dentro dela um líquido, que meteu num pequeno frasquinho que dona Ana lhe entregara para esse fim. Em seguida, a fidalga agradecera-lhe e deu-lhe para paga uma moeda de oiro luzidia.»
« Numa louca cavalgada, como possessa do demónio, voltaram de novo a Nandufe, e aí, antes que o deixasse para entrar no solar, Ana voltou-se para o anão, e olhando-o com um olhar maldoso, e numa voz dura, disse-lhe estas palavras, que o deixaram aterrado:
- « Já sabes, se algum dia alguém vier a saber que fui esta noite a casa da Adelaide Bruxa, mando-te matar, e atirar o teu corpo aos lobos para lhes servir de repasto.»
« E assim foi, meu senhor. Pouco tempo depois de ter contado esta história, o corpo do pobre enjeitado foi encontrado num ermo, meio devorado pelos lobos. É tudo tão esquisito, que uma pessoa nem sabe o que há de pensar.» - concluiu ela.
Era verdade, eu também me sentia perplexo e desorientado, mas de tal maneira fascinado com a história que acabara de ouvir que, sem atentar nas horas, pois que a noite já ia alta, não conseguia desfitar a velha criada, que na mesma voz cansada continuou.
- Desde esse dia, ninguém mais viu o morgado sorrir. Toda a tristeza do mundo lhe entrou na alma, não mais caçou o javali, coisa que ele tanto gostava. Fechou-se aqui neste solar, só saindo raras vezes, para dar intermináveis passeios sozinho, por entre as matas que cercam a nossa aldeia. Mandou que se conservasse o quarto da mulher tal como no dia da sua morte, e proibiu , fosse quem, fosse, de lá entrar. Mas, contou-me a minha mão, que em muitas noites ele se encerrava lá, e quem passasse no corredor junto à porta, o podia ouvir soluçar e murmurar: - Perdoa-me, Sofia ! Perdoa-me...
- E Ana de Melo, que foi feito dela?
- Dona Ana continuou nesta casa, governando-a, e criando o filho de Sofia. Quem a visse, diria ter ela sofrido com a morte da amiga o mesmo desgosto do marido, pois, apesar de alguns anos se terem passado, Ana de Melo conservou sempre o traje de luto. Nunca mais, ela tão amiga de tocar arpa e cantar, se ouviu. Passava os dias ou bordando ou lendo, no jardim à sombra dos castanheiros. Mas o ambiente desta casa, além da tristeza, era frio, havia um mal-estar. Entre estas paredes, o senhor dom Luís, praticamente, não falava à senhora dona Ana. Apenas os bons dias, ou as boas tardes, embora de parte dela houvesse os maiores esforços para modificar as coisas.»
« Certa vez, olhos indiscretos e ouvidos atrevidos que viram e ouviram o seguinte:
« Numa das muitas noites, em que o morgado se refugiava no quarto da mulher, para matar um pouco as saudades, a porta abriu-se de mansinho e dona Ana entrou. Na mão levava uma vela. Primeiro, o morgado não seu pela entrada dela, mas, despertado do seu sonho, pela luz bruxuleante da vela, ergueu os olhos, e vendo quem era saltou da cadeira onde estava e numa voz alterada pela ira perguntou:
- « Que vem a senhora fazer a este quarto?»
- « Vim à sua procura, Luís, vim ver o que era feito de si. É altura de voltar a viver. Já se passou bastante tempo desde que Sofia morreu, tem que recomeçar a vida, tem de a esquecer...»
- « Esquecer eu? Como pode falar em esquecimento? Não sente remorsos? É natural que os não sinta pois eu nunca pensei que houvesse no mundo alma tão pérfida como a sua. Saia deste quarto e não torne mais a vir aqui.»
- « Mas, Luís, terá você por acaso esquecido o que se passou naquela manhã de caça no «Matão»?
- « Não! Não em esqueci. E como metade da culpa me cabe a mim, é por isso, e só por isso, que a não expulsei desta casa. Porque, saiba, se alguma vez o meu louco coração se deixou prender pelos seus encantos, hoje esse amor está morto, e no lugar dele apenas existe um desprezo enorme pela mulher que tem a alma tão fria como tem lindo o sorto. Não a posso sofrer, e se a conservo junto de mim, é para que a sua presença me sirva de expiação. Saia, saia já daqui.»
- « Tenha cuidado, dom Luís, pois com Ana de Melo nunca ninguém brincou. As afrontas às mulheres da minha condição pagam-se e caras, morgado de Nandufe.»
- « Assassina...».
- « Cale-se, não diga mais nada, pois o que disse é já suficiente».
E dizendo estas palavras, dirigiu-se para a porta. Mas, antes de abandonar o quarto, voltou-se e uma voz alterada pelo ódio gritou-lhe:
- « Senhor dom Luís da Silveira, não se esqueça que me ofendeu, e que me vingarei. Hei de lhe fazer pagar uma a uma as palavras que me disse hoje, o céu será testemunha disso».

« Era esta casa frequentada por um grande amigo de dom Luís, o morgado da Veiga, jovem, belo e rico, adorado e sequestrado por quanto donzela o conhecia. Mas ele, desde a primeira vez que vira Ana, em mais ninguém pensara senão nela.»
« Nesse tempo, meu senhor, o nosso pobre país vivia horas de amargura, sofrendo as invasões do francês, que entrou pela nossa terra, como se tudo já fosse dele. Ah mas enganou-se, Portugal não gosta de viver sob o jugo estrangeiro. Quando o castelhano veio, convencido de que aqui ficaria para sempre, o nosso bom povo revoltou-se e expulsou-o, e o mesmo estava sucedendo com os franceses, embora queimassem, matassem e destruíssem. Por onde passassem, lá encontravam sempre um punhado de portugueses, para lhes fazer sentir como a sua presença era indesejada».
« Uma noite, meu senhor, já depois da ceia, quando tudo nesta casa se preparava para dormir, fomos surpreendidos por um grande alarido. Todos se olhavam com espanto, e mais espantados ficaram, quando fortes badaladas soaram no portão da entrada. O fidalgo mandou que fossem sem demora ver o que era.»
- « Senhor! Meu senhor, são os franceses!- Gritou, tomado de pavor, o lacaio que havia ido à porta.»
« Mas, a sua explicação teria sido escusada, pois atrás dele surgiu logo um oficial que, sem mais cerimónias, entrou na sala, e numa voz arrogante perguntou:
- « Alguém aqui fala francês?»
- « Falo eu»- Respondeu o senhor dom Luís.
- « Bem, ainda bem. É sempre agradável encontrar gente civilizada.»
« Dito isto, o francês tirou o chapéu e dirigindo-se ao seu avô, que continuava sentado, disse:
« Sou o visconde de Bleupré, comando um destacamento, e recebi ordem do quartel general de seguir com os meus homens até Lisboa. Mas, fomos surpreendidos pela noite e pelas más estradas, e como os meus homens, assim como os cavalos, começam a estar cansados, resolvi fazer paragem aqui na vossa aldeia. Portanto, peço-lhe que nos dê hospedagem».
- « Senhor visconde, noutras circunstâncias teria muito gosto em o conhecer e em o receber como amigo na minha casa. Mas, infelizmente, as coisas são de outra maneira, e eu não ponho aqui o meu palácio à disposição dos inimigos da minha pátria, como, infelizmente, têm feito outros grandes fidalgos deste reino, não só esquecidos daquilo que devem à rainha, como a eles mesmo. Assim, peço-lhes, senhor, que mande retirtar os seus homens, e procure a hospedaria da aldeia, onde certamente serão recebidos. Se pagarem, já se vê».
- « Meu caro, senhor, - retorquiu o francês- certamente não me soube fazer compreender bem, pois não lhe pedi que se dignasse receber-me. Simplesmente, requisitei esta casa em nome do imperador Napoleão I».
- « Ah se assim é, senhor oficial, tudo manda, pois, infelizmente, não me encontro em posição de oferecer resistência. Assim, faça favor de se instalar e ficar o tempo que desejais, mas permita-me que eu e a minha família nos retiremos para uma ala isolada deste mesmo solar, enquanto os senhores franceses viveram nele».
- «Certamente, se isso lhe dá prazer, mas lamento, profundamente, ser privado, assim como os meus colegas, da companhia de uma tão bela dama»- Disse ele, cumprimentando dona Ana de Melo.»
« Mas esta limitou-se a um pequeno abaixamento de cabeça e, sem mesmo lhe dirigir a palavra, saiu da sala, seguida pelo fidalgo e pelo jovem morgado da Veiga.»
«Algum tempo se foi passando, com o solar dividido em duas partes: numa os franceses, na outra os fidalgos; Mas se a vida no solar decorria calma, o mesmo não sucedia na aldeia, onde de vez em quando a resistência portuguesa se fazia sentir, em pequenos actos de sabotagem, mas que eram suficientes para perturbar os vitoriosos exércitos de Napoleão».
« Uma noite, quando tudo estava sereno, um enorme incêndio rebentou nas matas que cercam as cavalariças. Os sinos da nossa igreja tocaram a rebate, mas ninguém desta aldeia, nem das aldeias vizinhas acorreu ao toque. O fogo, rapidamente, cercou a casa, e as chamas irromperam, vitoriosas, tudo destruindo na sua passagem, até alcançarem o sótão da palha. Então, os cavalos, tomados de um intenso terror, rebentaram as amarras e furiosos, num galope infernal, pisando quem ou aquilo que lhes aparecesse pela frente, tomaram a fuga, tendo sido recuperado no dia seguinte a muitos quilómetros daqui.»
« Então, o visconde de Beupré, sentindo-se impotente para dominar a situação, e vendo como os acontecimentos cobriam de ridículo, não só a si, como também aos seus homens, mandou afixar editais, dizendo que seria dada grande recompensa a quem denunciasse os guerrilheiros.»
« Mais uma vez a sua tentativa de suborno se tornou estéril, pois boca nenhuma, nem mesmo a mais necessitada, se abriu, para tão negra acção de denunciar os seus heroicos irmãos, que sem armas, combatiam os inimigos da pátria, pelos pobres meios de que dispunham.»
« O morgado da Veiga que aqui se encontrava na noite da chegada dos franceses, não mais abandonou a casa, pois a sua paixão por dona Ana de Melo era maior de dia para dia. Andavam sempre vigiados e alguém os ouviu um dia:
- « Ana, minha querida Ana, porque continua tão renitente em dizer a palavra que faria deste homem o mais feliz do mundo?»
- « Meu caro José, que coisas sem nexo um homem apaixonado dia! Que belo casamento seria para o jovem e rico morgado da Veiga, dona Ana de Melo, que tem tanto de fidalga como de pobre, pois dela só tem a roupar que veste!»
- « Minha boa amiga, se um homem apaixonado por vezes não sabe o que diz, uma mulher, que se deixa vencer pela amargura, ainda o sabe menos. Que importa que seja pobre como Job ou rica como Salomão, se é de si, de si tal qual é, de quem eu gosto? E caso não chegam para o provar todas as provas de imenso amor que lhe tenho dado? E quantas mais eu não estaria disposto a dar-lhe, desde que mas quisesse aceitar!»
- « Que provas seriam essas, morgadinho?»
- « Quando um homem ama profundamente, uma mulher, reparte com ela todos os segredos, até os mais terríveis».
« Ao ouvir estas palavras, os olhos de dona Ana, tornaram-se brilhantes de malícia, pois na sua cabeça uma suspeita atrás nasceu. Conheceria, por acaso, aquele ingénuo rapaz o mistério que lhe poderia trazer a ela Ana de Melo, a fortuna? E foi com um sorriso cínico mas, ao mesmo tempo, ladino, onde o pobre apaixonado leu mil promessas, mesmo aquelas que iam muito além daquilo que alguma vez pensara alcançar, que dona Ana lhe lançou, num misto de desafio e incredulidade, as seguintes palavras:
- « Não me diga que tem segredos tão medonhos. Basta olhar para si, para se ver que isso seria impossível, pois ninguém como um morgado respira de todo o seu ser paz e serenidade. Meu caro, o segredo maior que poderia ter era saber quem é o chefe ou chefes destes rústicos armados e transformados em valentes. Mas, mesmo que o soubesse, não mo diria, pois sei bem que o amor que diz ter por mim não é tão forte como me quer fazer crer, a ponto de o levar a compartilhar comigo do êxito de uma conspiração».
« O morgado da Veiga era atormentado, pelos mais contraditórios sentimentos: se o seu bom senso e a sua lealdade lhe impunham um silêncio absoluto, silêncio esse que nem a morte ou a vista das mais terríveis torturas lhe permitiriam quebrar o seu coração, por outro lado revoltava-se à ideia de não mostrar à mulher mais amada de todas quanto lhe queria. Mas, em matéria de bom senso, e de amor, o coração vence sempre, e foi um misto de paixão e terror pelo caminho em que se estava a lançar que o morgado da Veiga, disse:
- « E quem lhe diz a si que não sei? Que não é esse exactamente o meu segredo? Ana, minha querida, como prova do meu amor por si, vou-lhe por nas suas mãos o destino de muitas vidas, e mesmo aquela que, logo a seguir à sua, lhe é mais cara neste mundo, a de meu primo Luís, pois que ele para mim é mais que meu irmão».
- « Mas que tem o senhor deste solar a ver com tudo isso?»
- « Minha cara Ana, disse e com razão que estes rústicos, para se tornarem heróis, precisam de um chefe, e esse chefe não é mais que Luís da Silveira, de quem este seu pobre criado não passa de um pobre auxiliar».
« Ana ouviu esta confissão, verdadeiramente, boquiaberta, sem dizer nada, quase sem fala, virou costas ao morgadinho, e encerrou-se no quarto.
« Aí, depois de pesar os inconvenientes que a sua atitude podia ter e de os comparar com as possíveis vantagens, Ana resolveu arriscar tudo por tudo. Sem suspeitar que continuava a ser vigiada, dirigiu-se à ala habitada pelos franceses. Viu uma ordenança, à qual disse:
- « Diga ao senhor comandante que preciso falar com ele, é muito urgente».
- « Tenho muita pena, minha senhora, mas o senhor comandante não recebe ninguém. Se a senhora quiser, pode falar com o nosso sargento».
- « Já lhe disse que quero falar com o seu comandante. Vamos mexa-se, não me faça esperar».
- « Mas, minha senhora...»
- «Jacques, que barulho vem a ser este?»
- «Ah sois vós, minha bela e arisca hospedeira»- Disse, sorrindo, o visconde.
E sempre sorrindo, fazendo uma ligeira inclinação, mandou que dona Ana entrasse na sala que lhe estava reservada como escritório.
- « A que devo eu tanta honra?»- Perguntou, ainda o comandante Bleupré.
– « Meu caro visconde, tenho ouvido dizer que os franceses são os homens mais galantes do mundo. Será verdade?»
- « Sim, na realidade todos o dizem, mas não é preciso ser o homem mais galante dom undo para nos rendermos perante tanta beleza como a que irradia de si. Por vezes, ponho-me a sonhar e vejo-a deslumbrante, recamada da mais belas joias, entrando pelo meu braço nos salões das Tulheiras, nos saraus dados pela nossa imperatriz».
- « E que seria preciso, meu caro visconde, para que o seu sonho se tornasse realidade? »
- « Nada ou quase nada; amanhã, abandonamos esta terra, e a minha felicidade seria imensa, pode crer, se me acompanhasse primeiro a Lisboa, e depois a Paris».
- « O quê? Não me diga que parte, sem primeiro ter castigado estes atrevidos aldeões e o seu chefe!»
- « Assim é, na realidade. Mas que quer, todos aqui parece que vivem no reino do silêncio, pois, por mais promessas que se lhes façam, nem um só seu um passo para nós».
- « E se lhe desse a chave desse terrível segredo, que me daria a mim em troca o nosso belo comandante?»
- « Minha senhora, o meu reconhecimento seria infinito, e o seu gesto para nos ajudar, creia-me, seria muito bem visto pelo nosso imperador, que não deixaria por certo de lhe demonstrar o mais sincero dos reconhecimentos e a mais bela das recompensas».
- « Pois então, mau caro visconde, não tem muito que procurar, para encontrar o chefe e o seu lugar tenente. Para os ir buscar, escusa mesmo de abandonar esta casa».
- « Como, minha senhora? Não consigo compreender o que quer dizer».
« Dona Ana levantou-se, encaminhou-se para a porta fria e altiva, mas antes de abandonar a sala, voltou-se e numa voz dura, onde se poderia notar um frémito de comoção, disse:
- « Prendam o morgado de Nandufe e o morgado da Veiga». E dizendo estas palavras, que deixaram o francês estupefacto, abandonou, com os olhos marejados de lágrimas, a sala, onde, levada por um sentimento de ódio e vingança, havia entregado à morte o grande amor da sua vida.»
- « Pouco tempo foi preciso para que o comandante viesse a si do imenso espanto em que as palavras de Ana o haviam lançado.»
- « Jacques, vai prender o morgado e o primo. Leva contigo alguns homens, para o caso de eles oferecerem resistência».
- « Meu senhor, talvez por dona Ana estar vigiada ou por as paredes terem ouvidos, como sempre tenho ouvido dizer, neste caso mais pareceu que assim fosse, pois, quando os franceses foram pelos fidalgos, não os encontraram. Correram tudo, não só esta casa, como os campos e terras em redor; passaram a pente fino todas as casas, desde a mais rica à mais pobre; todos os celeiros e medas de palha, mas nada! Em parte nenhuma os encontraram. Queimaram e torturaram, mas tudo foi em vão. E como o desespero se apoderou dos fortes que se viram vencidos pelos fracos e como para grandes males grandes remédios, foi lida e afixada por toda a parte a ordem mais terrível que jamais esta pobre gente ouviu ou de que teve conhecimento. Essa ordem, meu senhor, que ainda hoje faz tremer de pasmo quantos a conhecem, era a seguinte:
« Por cada dia que passasse sem que fossem encontrados e entregues às autoridades francesas, para que fossem julgados, os morgados de Nandufe e de Veiga, um homem válido, quer desta aldeia ou das redondezas, seria preso e suplicado.
« Oh! Meu rico senhor, nem mesmo coisa tão malvada como esta fez que alguém desta terra tivesse de se envergonhar de pecado tão feio como o de denúncia.
- Mas eles mataram mesmo alguém, Natália?
- Mataram, sim. O primeiro homem que lhes levaram e fuzilaram, junto ao muro do cemitério, foi um das Lebinhas daqueles de azenha, um homem na flor da idade, casado e pai de quatro criancinhas e que ainda para mais era o sustento e amparo do velho pai cego entrevado. Mas os malvados, não contentes com matar, ainda deitaram fogo à velha azenha, deixando na miséria aquela pobre gente.
- « Ai! Senhor dom Jorge! Só como era ninguém sabe, mas, por cada um dos nosso que era morto, nessa mesma noite dois soldados franceses eram encontrados com um punhal no coração, e um papel com as armas do morgado.
- E dona Ana?- Perguntei.- Que fazia ela enquanto tanto sangue corria por sua casa?
- Dona Ana, ela que até aí, e desde que sua avó tinha morrido, não mais cantara, tocara arpa ou deixara o fato preto, passou a ataviar-se com todo o esmero. Os salões desta casa abriram-se novamente, encheram-se de risos. Dona Ana tocava, todos cantavam, ou ela com a sua linda voz, ou eles naquela língua só deles. Depois, meu senhor, isto mais parecia uma casa de tavolagem que um solar, pois até altas horas da noite se jogava e bebia. Bebiam tudo quanto havia, até um vinho lá da terra delas assim a modos que espumoso a que davam o nome de champanhe ou coisa parecida.
- E o povo, Natália? O povo, que fazia ele?
- Sofria, meu senhor e calava, que mais podia fazer ele?
- E há quanto tempo demorava já o terror?
- O suficiente, para que o muro do suplício, como era já conhecido, fosse um imenso cemitério pois o visconde de Bleupré dera ordens para que nenhum dos mortos fosse sepultado, para que a vista daqueles corpos sem vida servisse de exemplo e aviso a todos os outros que se recusavam a colaborar com eles. Mas nem a morte, nem o cheiro que aquele amontoado de cadáveres exalava, conseguiam aterrorizar os pobres aldeões.
« Mas o dia chegou, em que neste pobre e martirizado povoado apenas quase existiam os velhos, as mulheres e as crianças. Nesse dia, meu senhor, foi grande o espanto, de todos quantos se divertiam, num alegre jantar, em que dona Ana era rainha absoluta, ao verem a lareira da sala de jantar mover-se até deixar a descoberto uma estreita passagem, na qual surgiu, vestido como se fosse para o baile da corte, o morgado, belo e altivo, seguido de perto pelo morgadinho de Veiga.
- Meus senhores- disse o morgado- aqui me tendes. Vim entregar-me, pois soube que não contentes com o terem matado todos ou quase todos os homens desta aldeia, para me deitarem a mão, e não o tendo conseguido, iam agora arrancar os filhos aos peitos de suas mães, para os matarem, para assim, desvairadas pela dor suprema que um coração de mulher pode suportar, elas, na agonia de suas almas me entregassem. Mas saibam, meus senhores, que tal coisa eu não consinto, que por mim haja uma nova matança dos inocentes».
- Meus senhores- Disse o visconde de Bleupré- há entre nós um traidor, pois esta ordem a que o morgado se refere é, absolutamente, secreta, tendo sido discutida no meu quarto, entre mim e os meus ajudantes».
- « Meu caro não se preocupe com isso, porque eu lhe explico: Tenho vivido ao vosso lado, tenho comido da vossa panela, tenho visto e ouvido tudo quanto aqui se passa, porque estas paredes têm segredos que só a mim e aos do meu sangue pertencem».
Os morgados foram logo presos e encerrados no quarto da torre, guardados à noite por dois soldados, não fossem eles terem jeito de se escaparem, e ali aguardaram que chegasse a manhã do dia em que, por sua vez, seriam conduzidos ao muro do cemitério.
« E esse dia chegou, amanheceu triste e frio, como triste estava toda a aldeia. Nem uma só janela se abriu, nem um só cão vagueou pela ruas. Dir-se-ia que era uma terra morta, e mais morta ainda ficou quando se ouviu a salva de tiros que punha fim a duas vidas tão nobres. Nesse momento, apenas o sino da nossa igreja tangeu, não se sabe porque mãos.
« Poucas horas depois deste último crime, os franceses prepararam-se para deixar a terra que tantos tormentos lhes trouxera e com eles partia dona Ana de Melo.
- « Mas, senhor, mulher tão má e ruim não mais poderia gozar a luz do sol. E quando ela se preparava para subir para o carro, que a levaria daqui, para bem longe, para onde pudesse viver alegre e esquecida do mal que fizera, uma pedra veio que a atingiu, vinda de onde...ninguém sabe, atirada por quem...também não. Mas, atrás daquela, veio outra, e outra, e muitas mais, fazendo que dona Ana se desequilibrasse e caísse, ficando debaixo do rodado do seu próprio carro, pois os cavalos espantaram-se e tomando o freio nos dentes largaram numa louca desfilada. E as pedras continuaram a cair sobre aquela que fora uma beleza, e que já nada mais era que um monte de sangue e carnes esfaceladas. A justiça tinha sido feita...

Fotografia de 1952 - Canas de Santa Maria


Casa nobre no Casaínho.




Casa quinhentista no Casaínho



Casa setecentista em Abóboda, São João do Monte





Casa Setecentista em Sabugosa (1770)





Casa do Mosteiro do Lorvão, Sabugosa.



Cadeia do antigo concelho de Sabugosa.



Bairro Vicentino, Canas de Santa Maria.



Casas construidas pela Conferência de S.Vicente de Paulo para as pessoas carenciadas da freguesia.

Casa Nobre no Carvalhal de Tondela




Comemoração do Centenário da Grande Guerra,junto ao Monumento que a simboliza em Tondela - 18/10/2014.



Santa Eufémia em Tondela


Tuna de Caparrosinha, anos 40-50


Pelourinho de Canas de Santa Maria e Casa do Celeiro Real


Paço de Fráguas, Mosteiro de Fráguas.


Igreja de Mosteiro de Fráguas


Fotografia de Maria Ferreira tirada na escola de Jueus Caramulo.


Fonte do Largo do Zagão, Sabugosa.


Fonte de Chafurdo, São Miguel do Outeiro.


Fonte do Mosteiro de Fráguas


Fonte de Molelinhos



Fonte de Chafurdo, Canas de Santa Maria


Mapa da Estância Sanatorial do Caramulo


Confraria dos Carolos e Papas de Milho