segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Cândido de Figueiredo falando de Tomás Ribeiro

 

Cândido de Figueiredo falando de Tomás Ribeiro
(in: “Homens e Letras – Galeria de Poetas Contemporaneos” por Cândido de Figueiredo, Lisboa, Typographia Universal, 1882.)
 
Ortografia original
 
“Thomaz Ribeiro
 
Ha cerca de vinte annos, o presidente da câmara municipal do concelho de Tondella chamava-se Thomaz Ribeiro, ou, antes, Thomaz Antonio Ribeiro Ferreira, que tal era no seculo, - como se dizia em tempo de frades, - o nome do poeta.
O meu visinho Marques, um dos vereadores aldeãos d’aquelle concelho, quando em dias de sessão regressava da villa à nossa aldeia, não tinha à noite, junto da lareira, para a familia e para os amigos, senão enthusiasmos, enfases, hiperboles, a propósito do seu presidente.
- Aquillo só visto, - perorava elle; - na câmara ninguem tem voto nem voz contra o presidente, porque elle a todos convence e persuade, com palavras e modos que ninguem aprendeu ainda; quando o doutor Thomaz apparece na praça, na rua, n'uma botica, em qualquer parte, formam-lhe circulo respeitoso e attento dezenas de individuos interessados apenas… em o ouvir: fala que nem um livro. Quando fala, ninguem respira; e quando se cala, calam-se todos para o tornar a ouvir. O compadre, que ainda o não conhece, vá na quinta feira à villa, e hade ver. Vá comigo, que eu apresento-o.
O compadre do vereador aventurava às vezes:
- Homem, se você fosse mulher, apostava...
O Marques replicava:
- Palavra de honra, se eu fosse mulher, diabos me levem...
- Cala-te ahi acudia a esposa; - já tens idade para fingir que tens juizo.
Estas palestras faziam-me crescer a agua na bocca; e, na minha imaginação de treze ou quatorze annos, passava uma figura lendaria, mithologica, sobre-humana, perante a qual o meu espírito acompanhava com efiusão as genuflexões e o incenso do camarista Marques.
Mas, o que a meus olhos tomava proporções desmedidas, não era o presidente da camara, nem o tribuno, nem o doutor; era o poeta. Eu conhecia o mundo da poesia pela assidua e conscienciosa leitura do Almanak de Lembranças; e ficara-me de memoria um ou dois cantos, que ouvira ler repetidas vezes, do Dom Jaime, nos serões do José Francisco, um eleitor intelligente que recebia do poeta frequentes provas de estima.
Succedia que n'esse tempo eu alimentava uma grande curiosidade e umas grandes preoccupações acerca de arte poetica, que eu só conhecia por tradição, e de que ninguem me dava noticia na minha aldeia.
Sabia de cór a Lua de Londres, achava-lhe os versos regularissimos na harmonia e na qualidade sonica, mas, quando procedia à contagem das sillabas, segundo as regras do abecedario, achava discordancias impossiveis... Nada! aquillo seguramente devia ter regras certas, indefectiveis, mas superiores à minha previsão, Uma tortura.
Um dia, ao sair da escola, chamei de parte um condiscipulo, Bernardo Correia, parente do doutor Thomaz, e disse-lhe à puridade:
- Não digas nada, porque fiz um plano...
- Um plano! tu fazes planos?
- Espera! eu quero conhecer o doutor Thomaz, cá por coisas. Tu vaes comigo até Parada, e eu entro-lhe em casa comtigo. Para desviar reparos, vamos caçando, passamos por lá e apparecemos como por acaso. Eu peço licença a meu pai para levar espingarda, tu levas a do teu José, e verás como as pêgas fogem adiante de nós. Valeu?
- Mas olha que são duas léguas - ponderou Bernardo.
- Não sejas maricas; as recoveiras vão todos os dias a Vizeu, a pé, e mais são trez léguas.
- Está dito, — concluiu elle.
E dito e feito.
No dia ajustado não seguimos montes e atalhos como genuinos caçadores, mas seguimos a estrada real, como quem procura o caminho mais curto e breve.
Eu ia concentrado, absorto em receios e conjecturas.
E pensava:
- Que lhe direi eu? terei coragem para lhe solicitar uma lição? com que pretexto? E depois que especie de homem será elle? como se deverá tratar um poeta, um ser superior, que conhece os arcanos da poesia, e trata por tu as divindades do Olimpo ?
E o coração batia-me apressado. Ao mesmo tempo, tentava reanimar-me recordando um caso analogo, succedido com o Bernardino da Varzea. Este sujeito quando a linha ferrea ligou a Beira com a capital, veio até Lisboa. Trazia algumas libras, um grande prurido de sensações novas, uma grande curiosidade de ver, e apalpar, se tanto fosse possivel, as grandes celebridades que enchiam o mundo desde Lisboa até Lobão e Nandufe.
Chegou, viu, mas parece que não palpou nem gostou. Ao voltar a Lobão, todas as suas impressões de viagem se resumiam n'um impertinente sorriso de desdem.
- Então o que nos diz da capital, seu felizão? - perguntavam-lhe às vezes n'um intervallo de bisca.
- Ora adeus! A gente julga cá uma coisa, é elle é outra. As gazetas enganam-nos descaradamente. Vejam o que ellas dizem do duque de Loulé : que elle é conde de Val de Reis e senhor da Quarteira; que elle casara com a filha de um rei; que elle mete n'um chinélo os politicos do mundo inteiro; que dá conselhos ao rei e faz tremer todas as grandezas; que tudo se descobre e toda a gente fecha os olhos com deslumbramento quando elle passa, et cetera e tal e coisas. Quis vêr o prodigio, mas afinal de contas, - os senhores não acreditam, mas é verdade, - afinal de contas, é um homem como qualquer outro! - penteado e barheado como qualquer official ali do 14; uma carruagem como as outras carruagens ; dois cavallos mais ordinarios que os do morgado de Mollelos; um cocheiro como o da fidalga do Loureiro... um homem como os outros, sem tirar nem pôr.
Esta veridica historia dava-me alentos; e eu monologava:
- Bem pode ser que o doutor Thomaz seja também um homem como os outros.
E caminhamos.
Ao avistar Parada de Gonta, dominado sempre pela imagem lendaria do poeta, murmurei instinctivamente:
Que fresca aldeia formosa,
nas margens do meu Pavia! etc.
E, ao atravessar a povoação, no local onde negrejam os restos do palacete de D. Martinho de Aguilar, murmurei tambem:
Um dia, — quando, não sei, —
fui ver as gastas ruinas, etc.
Entrámos em' casa do doutor Thomaz. Não obstante o caso do Bernardino da Varzea, os meus passos eram pouco firmes, e a respiração não era livre.
Seriam nove horas da manhã. Da cosinha evolavam-se uns aromas bons que prenunciavam o farto almoço beirão. No pateo agitava-se uma multidão de gallinhas, patos e perus, disputando o milho que uma criada anafada lhes atirava da varanda às mãos cheias. Um grande gato branco, estirado ao sol, sobre o corrimão da varanda, espreguiçava-se e bocejava, fechando os olhos sornamente. Umas pombas arrulhavam nos beiraes do telhado, e um cão perdigueiro vinha-nos ao encontro, farejando-nos familiarmente as mãos.
Até aqui, tudo exactamente como em muitas casas que eu conhecia na Beira.
Disseram-nos que o senhor doutor estava no quarto, fazendo a barba, e que podiamos entrar.
- Faz a barba! - disse eu comigo, refreando um pouco a minha fantasia e os meus receios.
Effectivamente, repotreado n'um tamborete patriarcal, soffria resignadamente as torturas que lhe inflingia um Figaro de aldeia; e, com a serenidade do justo, fechava os olhos para não ver o instrumento do supplicio.
Cai das nuvens! E depois, uma toalha atada ao pescoço, é a cara coberta de espuma de sabão... exactamente como os outros homens que se barbeiam.
O poeta, sem desviar a cara do cutello barbicida, estendeu-nos a mão e disse-nos umas frazes amabilissimas, e nem uma queixa lhe ouvi contra o seir algoz. Terminado o sacrifício, o poeta aprumou o corpo esvelto e flexivel, bipartiu a pera, amaciou o bigode, atou a gravata, com uma elegancia nobre e despretenciosa, e concluiu:
- Vamos almoçar.
- Tambem os immortais almoçam! — disse eu comigo sentenciosamente.
Não podia haver desillusão mais completa.
Á meza, Bernardo denunciou-me como autor de diversos attentados liricos, nomeadamente uma decima, escrita a lapis na frontaria de uma igreja.
Corei, gaguejei umas desculpas, articulei umas atenuantes, mas o juiz foi inexoravel.
- Venha a decima, - ordenou-me o doutor.
A toalha alvissima da meza assumiu a meus olhos umas côres fantasiosas e cambiantes.
Com voz tremula e compungida, como a de um condenado à forca ao pronunciar as ultimas preces, comecei:
Salvó, templo tão brilhante,
das igrejas à belleza!
Tu não queres que eu cante...
O poeta, sentindo que um verso erradíssimo lhe perfurava e retalhava a membrana do tímpano delicadissimo, interrompeu-me.
- Depois ouviremos o resto. Que livros tem estudado?
Tomei ar, e respondi, folheando pausadamente a memoria:
- Diversos: o Manual Enciclopedico do senhor Monteverde, o Almanak do senhor Castilho, o Lunario Perpetuo não sei de quem, a historia da princeza Magalona, a confissão do Marujo...
- Já não é pouco, observou o doutor Thomaz, esgotando a sua chavena de cafe; - hade também estudar um que eu lhe empresto: o Tratado de versificaçãode Castilho.
Arregalei os olhos, de surpreza e de gula: ia finalmente saborear um acepipe desconhecido mas entresonhado.
Recebi n'essa tarde a primeira lição poetica. Se d'ella se arrependeu o mestre não o afirmo; mas eu, alguns leitores e varios livreiros é que temos sentido as naturais consequencias d'essa lição. Dei o primeiro. passo n'um caminho em que eu não desejaria ver entrar filhos meus, mas dei-o com prazer e com reconhecimento. O reconhecimento pelo menos era devido porque as intenções do mestre não podiam ser mais santas. D'ahi em diante não pude deixar de fazer côro com o vereador Marques, que no calor das suas apologias, quando a sêde lhe prendia a lingua, me cedia generosamente a palavra, em vez de pedir um copo de agua.
O meu espirito seguia com interesse e enthusiasmo os triunfos e as ascensões sociais e literárias do autor do D. Jaime; e observei que esse enthusiasmo e interesse não era só de um ou de poucos. A Beira, que elle muitás vezes chama sua, era realmente delle. Na cidade, na aldeia, no campo, Thomaz Ribeiro creara um culto novo, 0 culto do merito pessoal. Os seus versos, principalmente recitados por elle, eram elementos seguros da propagação e radicação desse culto.
Quando elle recita, a sua voz tem uma estranha melodia, plangente, insinuante, persuasiva; os seus olhos ora se humidecem e descaem numa languidez compungida e dôce, ora relampagueiam vivissimos, iluminados por uma ideia superior; os musculos da sua fronte estremecem, comprimem-se, distendem-se, desapparecem, como as ondas de um lago sobre que se encontram e lutam virações oppostas.
Eu vi senhoras nervosas e impressionaveis passar, ouvindo-o, do enthusiasmo à febre e da febre às lagrimas, com uma espontaneidade e sinceridade que são a maior gloria do artista.
A estes predicados de bem falar deve elle em parte os seus creditos de orador parlamentar.
D'esta vez porém a politica não matou a poesia: o deputado, o magistrado, o burocrata, o ministro, nunca deixou de ser poeta : tambem a gratidão explica o facto: se Thomaz Ribeiro não deve um dissabor á poesia!
A’ politica talvez deva alguns. E só á politica?
Quantas nuvens ignoradas não obumbram muitas vezes a existencia dos que mais felizes se nos antolham! A preposito disse um poeta:
A lua é calma e tem vulcões no seio.
A meu vêr, quando Thomaz Ribeiro partia para a India no desempenho de funcções officiais, não accorria ao cumprimento de um dever civico: fugia; esquecia-se.
A sua poesia em geral é triste, não d'aquellas tristezas piegas dos romanticos de melena desgrenhada, pseudo-lamartinianos, que nos ultimos trinta annos inundaram os prélos com catadupas de trivialidades aconsoantadas. Hajam vista as estrofes que o poeta consagrou à memoria querida da que lhe foi mãi, exemplo e mestra. Não é a sentimentalidade que se derrete em versos banaes, em cantilenas prostituidas pela voz aguardentada dos guitarristas vadios; é o sentimento nobre e elevado que se evola n'uma fraze, n'uma nota, n'um som que passa.
Em meio das paisagens mais ridentes que a paleta do artista desenrola, opulentas de seiva, de cores, de luz, ha sempre um sulco escuro, um traço melancolico, que prende instinctivamente as vistas e as simpalhias do observador attento.
Sentimentalista sincero, conservador e tradicionalista em sociologia e metafísica, elle, não obstante ser um poeta modernissimo de incontestável talento, nunca poderia ser um poeta revolucionario; por sua parte, poetas revolucionarios, os poucos que entre nós merecem este nome, não sabem rir-se, quando Thomaz Ribeiro, n'uma sociedade e n'um seculo que declarou guerra de extermínio a todas as metafisicas, declara convictamente que acredita em Deus: elle sabe dizel-o de maneira, que não suscita um protesto, uma ironia, um epigrama. É o poder da palavra, ou, antes, o poder do estilo, que por si explica a victoria dos sistemas e dos apostolados felizes.
A’ hora em que escrevo, Thomaz Ribeiro é governador civil do Porto. A mais insignificante das suas circulares aos administradores, seus subordinados, será tudo o que quizerem os seus adversários politicos, mas o que nunca deixará de seré uma peça de estilo, uma obra de artista.
“Neste caso, graças à politica: a administração não perde, e a literatura ganha”.

Sem comentários:

Enviar um comentário